quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Apagar sua história pessoal - Parte 2: O apego, a escravidão e a liberdade


Por Sheik Mohammad Abdullah Ansari

Escrevi:

“Uma das coisas que impede nosso avanço espiritual é o “puxão” do passado. Todas as coisas que essa pessoa que “éramos”, a pessoa dos corpos anteriores, a pessoa que cremos que eram nós mesmos, suas ideais, ações, façanhas, amigos, filhos, esposos/as, pecados, boas obras, tudo são como laços fixos, presos a todas essas semirrealidades da outra pessoa através da qual nossa alma entrou e saiu. Até que cortemos esses laços, continuaremos estancados, paralisados e passando por corpos cada vez mais sólidos e sujeitos a todos os efeitos da vida material assim como do ego, a personalidade falsa, que nos têm como prisioneiros em uma fantasia.”

Também escrevi recentemente:

“Não estamos aqui na Terra para acumular coisas, não estamos aqui para ser exitosos e importantes... estamos aqui para observar, experimentar, viver, amar (não ser amado, mas amar), ser e conhecer Allah que está escondido sob a superfície de todas as coisas. Em todas as tradições espirituais nos advertem contra o apego às coisas, a não sermos controlados pelo apego à materialidade. Pouca gente faz caso, nem entende.”

A primeira parte de cima se refere ao fato de que nossa desconexão do passado é mais que uma forma de pensar ou de controlar o cérebro e as emoções, mas também uma realidade, que o tempo não flui como água, mas é uma série de fotogramas que dão a ilusão de movimento, de continuidade. Realmente não somos as pessoas do passado. O universo é como um holograma e nós também. Vivemos em um mundo multidimensional, mas nosso estado atual não nos permite ver tudo o que está acontecendo, não podemos ver sem trabalho, mais que uma ranhura da realidade. Por isso a maioria da humanidade carrega sobre si tudo o que fez, pensado e sentido nos fotogramas do passado, crendo que essas pessoas eram elas mesmas. O que nos conecta com nosso passado é karma, ao crescer/mudar o corpo (uma sucessão de corpos que habitamos) o corpo acumula efeito dos fatos (que inclui pensamentos e emoções) do corpo anterior e assim o karma nos afeta em nosso estado atual porque o corpo reflete cada pensamento bom ou mau assim como as emoções produzem efeitos tanto físicos quanto psíquicos.

No segundo parágrafo reproduzido acima falamos do apego. Como diz, o apego é abordado por todas as tradições espirituais como um obstáculo primordial na senda espiritual. Mas, o que significa o apego? Obviamente vem da palavra pegar. Imagine todas as coisas do quarto voando em sua direção, como se você fosse um imã e estivesse coberto de todas as coisas ao seu redor. Você poderia se mover? Isso é exatamente o que está acontecendo com quase todas as pessoas, não é possível ver as coisas, mas sim, estão pegas (coladas) às pessoas. Mas se não é físico, o que está pego (colado) e como?

As coisas estão pegas (coladas/grudadas) ao corpo “físico”. Por que a palavra físico está entre aspas? Porque nossa realidade é outra, um corpo sutil ou energético ou uma consciência que se move de corpo em corpo. “De corpo em corpo” neste caso não estou falando da transmigração ou reencarnação, mas do corpo físico deste momento ou período de tempo para outro corpo físico nesta mesma vida. Depois de alguns anos não temos nem uma única célula de antes, o corpo é totalmente novo, parece mais velho, mas na realidade é como outra nova existência – cada momento é um pacote único. Trate de imaginar a sua realidade, o seu ser real ou alma, como uma nuvem passando de um corpo para outro continuamente. Os corpos são o que acumulam o efeito de karma e isso é o que vamos experimentar bom ou mau. E esse é o sofrimento, os estados mentais e emocionais desagradáveis que experimentamos – os efeitos dos acontecimentos do passado, não só pelo que fizemos, mas também pelas experiências da vida, ou vidas. O único alívio ou salvação é desconectarmos do passado – apagar nossa história pessoal.

É primordial manter em mente, estar consciente da, a razão pela qual estamos aqui na Terra. Estamos aqui como parte de um processo de crescimento espiritual. Tudo aqui é projetado com esse fim. A vida e tudo o que acontece tem um propósito, há uma razão para tudo o que acontece. Se não entendemos isso ou o esquecemos, nosso passado cria impressões no corpo e conduz ao sofrimento e a um grau de estancamento espiritual. Tudo reside na mente. A pessoa mediana é formada por experiências de sua infância e vida em geral, seu passado – é pura psicologia básica. Mas mudamos a atitude e vemos o passado, nossas experiências, boas e más, como parte de um processo e que estamos progredindo por ter experimentado tudo isso (ainda que não saibamos completamente as razões) mudamos toda a situação. Temos que entender o que aconteceu, ocorreu ao corpo que habitamos temporalmente – não somos esse corpo e nem é o mesmo corpo que habitávamos no passado. Sofremos por identificarmos com o corpo quando na realidade somos outro.

O que nos aconteceu há dez, vinte, trinta ou mais anos ocorreu a outro corpo e fisicamente já não existe. Sua única existência nós estamos criando na mente, uma irrealidade que produz dores físicos reais. É uma decisão que tomamos.

A única realidade é o momento presente. Sentir o momento é viver. Escolher recordar o passado como uma realidade nos arrasta para baixo, nos faz pesados e tira a sensação de vida do corpo – mata o momento.

Siddartha (o Buda) descobriu que nosso hábito de fixar-se na mera aparência de nosso sonho do mundo relativo, pensando que ele é realmente existente, nos joga num ciclo interminável de dor e ansiedade. Estamos num sonho profundo, hibernando como um bicho num casulo. Temos tecido uma realidade baseada em nossas projeções, a imaginação, esperanças, medos e delírios. Nossos casulos se tornaram muito sólidos e sofisticados. Nossas imaginações são tão reais para nós que estamos presos no capuz. Mas podemos nos libertar simplesmente por entender que tudo isso é nossa imaginação.”
Dzongsar Khyentse

“[...] conhecereis a verdade e ela vos libertará” (João 8:32). A verdade é este momento, nenhum outro momento é a verdade. Só se nos desconectarmos do passado poderemos ser livres. Recordar a verdade é a maneira de ficarmos presentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Expectativas, decepções e aceitação

Caderno de trabalho sufi Por Mestre Mohammad Abdullah Ansari Tudo o que vemos, isto é, este mundo material e as coisas que lhe s...